terça-feira, 12 de novembro de 2013

Post Mortem

A morte é um troço engraçado. É uma completa inversão de sentido na vida. Pensa bem, quando o sujeito nasce a família sorri e ele chora, quando ele morre a família chora e ele ri, mesmo que em outra dimensão. Em suma, é uma sucessão de negações, na qual se começa pela negação à vida e se termina negando tudo com o mar de “nãos” que se recebe.

Outro dia ocorreu com um amigo, Cardoso. Seu sogro, seu Carlos Augusto, já estava lá pelas tantas havia alguns meses e Cardosinho já estava resignado. Sabia que a hora chegada não tardaria, todos estavam cientes, família e amigos já estavam todos de sobreaviso.

Seu Carlos era um renomado cirurgião, daqueles que era craque em obliterar pés de galinha, um mestre en faire la liposuccion em renomadas artistas e sabia deixar adolescente até a mais madura cinema star.

Obviamente, o hospital que tocava não abriu mão de fornecer lhe o melhor tratamento, pois “era muito pouco por tudo o que ele teria feito em nome do crescimento deste renomado centro de saúde e beleza”.

No enterro, uma capela lotada demonstrava a extrema falta que o morto faria. Todos amigos, nenhum deixaria de demonstrar seu afeto nesta hora complexa e que veio aliviar seis longos meses de sofrimento. E todos diziam, com aquela austera consternação de quem se preocupava mais com o filme que deixou pela metade:

- Ainda não consigo acreditar, ele se foi tão de repente...

Mas o pior certamente não era isso. Por mais comum que a morte seja, ninguém quer ser responsável por dar a notícia ao ente já ressabiado. Assim sendo, às vésperas do cortejo, Cardoso recebeu uma ligação à uma da manhã. Era do hospital:

- Boa noite, a sra. Carmem Lucia está?

- Não, ela está voltando de viagem, quem fala?

- Aqui é do Hospital São Miguel, o senhor é parente do sr. Carlos?

- Sou sim, ele faleceu?

- Perdão, senhor, não podemos informar. O senhor poderia comparecer ao hospital com os documentos 
dele?

- Claro, mas se ligam pra minha casa a esta hora me pedindo documentos quer dizer que ele está morto. Ou não está?

- Não podemos informar senhor. Traga tudo o que tiver do possível falecido.

- Tudo bem, mas para onde me dirijo ao chegar ai?

- O senhor saberá quando chegar.

E não informaram. Avisou à alguns parentes e rumou ao hospital, dizendo que de lá ligaria assim que tivesse a confirmação do óbito.

Levou consigo tudo o que pôde, inclusive as roupas do não-dito cujo e uma camisa do América, clube que por anos foi a maior paixão do não-confirmado falecido. Hospital vazio. No estacionamento, só ele e sua dúvida. É isso, seu Carlos estava morto.

Ao chegar, dirigiu-se à secretaria, onde foi logo informado que seguisse as placas no corredor. Confusão. Havia pelo menos três placas na parede.

A resposta veio seca “Olha senhor, siga a que preferir, menos a primeira e a última, ok?”

A placa do meio indicava o caminho para a “Assistência Social de Óbito”. Lá, havia inclusive um cartaz explicando todos os trâmites de como conseguir a certidão neste momento tão difícil. Não havia mais dúvidas, já se imaginava explicando à mulher o inexplicável. Por via das não-dúvidas, questionou:

- Ele está morto, é isso? Preciso informar à minha mulher.

E a menina, branca como um fantasma, respondeu, tentando não passar o pavor que sentia ao lidar com a morte e suas nuances. Sua resposta veio da mesma forma, fria como um cadáver, invisível como um espírito:

- Não temos essa informação, senhor. Se dirija ao CTI para conversar com o médico.

E não conseguiu confirmar e nem não-confirmar com tão pouco que não havia recebido.

Assim foi durante a noite toda. A cada ala que se dirigia, o pavor e a aflição aumentavam e todos se livravam da obrigação de comunicar a morte como quem dela foge. Depois de correr o hospital inteiro, foi colocado em uma sala na qual uma junta de médicos se reuniu pra decidir que assim, todos juntos, um amparado no outro, revelariam a morte ao cunhado.

Também não conseguiram. Seu Carlos era a alma desse hospital, comunicar sua morte seria como matar cada um deles em conjunto. Não conseguiriam confirmar a morte de alguém tão importante, todos o tinham como um guru.

A situação parecia perdida, mas eis que num lampejo de responsabilidade Dr. Marcondes, Ph.D. em Harvard e quinze anos de Cardiologia, vislumbrou a solução, brilhante como um sol da manhã. Passava pelo corredor o seu Antônio, faxineiro do hospital, homem de hábitos simples e não menos tempo de casa que o diretor. Foi incumbido da tarefa, é claro, pois a corda sempre arrebenta do lado do mais fraco.

E o velho emendou, como quem já viveu demais pra esses protocolos:

- Olha, doutô, seu Carlos morreu. Passa amanhã as oito que o corpo já foi analisado e pode deixá que eu ponho a camisa do América nele.

E assim se foi, sem pestanejar, entre uma esfregada e outra, como quem dilui em água e sabão aqueles corredores tão cheios de dor e sofrimento.

Quanto aos sábios e gabaritados doutores, bom, dizem os mais entendidos que simpósio após simpósio continuam tratando a morte com naturalidade, falando dela como se companheiros fossem, bradando por ai que “a morte é a única coisa que ocorre a todos na vida, e dela não se pode fugir jamais!”.

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