A morte é um troço engraçado. É uma completa inversão de
sentido na vida. Pensa bem, quando o sujeito nasce a família sorri e ele chora,
quando ele morre a família chora e ele ri, mesmo que em outra dimensão. Em
suma, é uma sucessão de negações, na qual se começa pela negação à vida e se
termina negando tudo com o mar de “nãos” que se recebe.
Outro dia ocorreu com um amigo, Cardoso. Seu sogro, seu
Carlos Augusto, já estava lá pelas tantas havia alguns meses e Cardosinho já
estava resignado. Sabia que a hora chegada não tardaria, todos estavam cientes, família e amigos já estavam todos de sobreaviso.
Seu Carlos era um renomado cirurgião, daqueles que era
craque em obliterar pés de galinha, um mestre en faire la liposuccion em renomadas artistas e sabia deixar
adolescente até a mais madura cinema star.
Obviamente, o hospital que tocava não abriu mão de fornecer
lhe o melhor tratamento, pois “era muito pouco por tudo o que ele teria feito em
nome do crescimento deste renomado centro de saúde e beleza”.
No enterro, uma capela lotada demonstrava a extrema falta que
o morto faria. Todos amigos, nenhum deixaria de demonstrar seu afeto nesta hora
complexa e que veio aliviar seis longos meses de sofrimento. E todos diziam,
com aquela austera consternação de quem se preocupava mais com o filme que
deixou pela metade:
- Ainda não consigo acreditar, ele se foi tão de repente...
Mas o pior certamente não era isso. Por mais comum que a
morte seja, ninguém quer ser responsável por dar a notícia ao ente já
ressabiado. Assim sendo, às vésperas do cortejo, Cardoso recebeu uma ligação à
uma da manhã. Era do hospital:
- Boa noite, a sra. Carmem Lucia está?
- Não, ela está voltando de viagem, quem fala?
- Aqui é do Hospital São Miguel, o senhor é parente do sr. Carlos?
- Sou sim, ele faleceu?
- Perdão, senhor, não podemos informar. O senhor poderia
comparecer ao hospital com os documentos
dele?
- Claro, mas se ligam pra minha casa a esta hora me pedindo
documentos quer dizer que ele está morto. Ou não está?
- Não podemos informar senhor. Traga tudo o que tiver do
possível falecido.
- Tudo bem, mas para onde me dirijo ao chegar ai?
- O senhor saberá quando chegar.
E não informaram. Avisou à alguns parentes e rumou ao
hospital, dizendo que de lá ligaria assim que tivesse a confirmação do óbito.
Levou consigo tudo o que pôde, inclusive as roupas do
não-dito cujo e uma camisa do América, clube que por anos foi a maior paixão do
não-confirmado falecido. Hospital vazio. No estacionamento, só ele e sua
dúvida. É isso, seu Carlos estava morto.
Ao chegar, dirigiu-se à secretaria, onde foi logo informado
que seguisse as placas no corredor. Confusão. Havia pelo menos três placas na
parede.
A resposta veio seca “Olha senhor, siga a que preferir,
menos a primeira e a última, ok?”
A placa do meio indicava o caminho para a “Assistência
Social de Óbito”. Lá, havia inclusive um cartaz explicando todos os trâmites de
como conseguir a certidão neste momento tão difícil. Não havia mais dúvidas, já
se imaginava explicando à mulher o inexplicável. Por via das não-dúvidas,
questionou:
- Ele está morto, é isso? Preciso informar à minha mulher.
E a menina, branca como um fantasma, respondeu, tentando não
passar o pavor que sentia ao lidar com a morte e suas nuances. Sua resposta
veio da mesma forma, fria como um cadáver, invisível como um espírito:
- Não temos essa informação, senhor. Se dirija ao CTI para
conversar com o médico.
E não conseguiu confirmar e nem não-confirmar com tão pouco
que não havia recebido.
Assim foi durante a noite toda. A cada ala que se dirigia, o
pavor e a aflição aumentavam e todos se livravam da obrigação de comunicar a
morte como quem dela foge. Depois de correr o hospital inteiro, foi colocado em
uma sala na qual uma junta de médicos se reuniu pra decidir que assim, todos
juntos, um amparado no outro, revelariam a morte ao cunhado.
Também não conseguiram. Seu Carlos era a alma desse
hospital, comunicar sua morte seria como matar cada um deles em conjunto. Não
conseguiriam confirmar a morte de alguém tão importante, todos o tinham como um
guru.
A situação parecia perdida, mas eis que num lampejo de
responsabilidade Dr. Marcondes, Ph.D. em Harvard e quinze anos de Cardiologia,
vislumbrou a solução, brilhante como um sol da manhã. Passava pelo corredor o
seu Antônio, faxineiro do hospital, homem de hábitos simples e não menos tempo
de casa que o diretor. Foi incumbido da tarefa, é claro, pois a corda sempre
arrebenta do lado do mais fraco.
E o velho emendou, como quem já viveu demais pra esses
protocolos:
- Olha, doutô, seu Carlos morreu. Passa amanhã as oito que o
corpo já foi analisado e pode deixá que eu ponho a camisa do América nele.
E assim se foi, sem pestanejar, entre uma esfregada e outra,
como quem dilui em água e sabão aqueles corredores tão cheios de dor e
sofrimento.
Quanto aos sábios e gabaritados doutores, bom, dizem os mais
entendidos que simpósio após simpósio continuam tratando a morte com
naturalidade, falando dela como se companheiros fossem, bradando por ai que “a
morte é a única coisa que ocorre a todos na vida, e dela não se pode fugir
jamais!”.
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