terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Presentes

Escuta essa. Aconteceu com o primo de um amigo meu. Deve ser verídica, não sei, mas agora que já está saindo não há mais como segurar. Infelizmente eu nunca soube como não ser verborrágico.

Demétrio, o tal primo, era um advogado recém formado. Sonhos na cabeça, um futuro brilhante a ser traçado, canetas e mais canetas já gastas de tantas anotações e um estranho hábito de besuntar o cabelo em gel.

Colocou na cabeça que um dia, “Em breve!” dizia ele, seria juiz. “Coisa pouca...” dizia a mãe, toda orgulhosa, “Esse menino quer ser Deus.” dizia o pai, fazendo pouco caso, enquanto o irmão mais novo olhava pra Dedé com os olhos de quem realmente vê um Deus.

Todos os dias, de uma da tarde até sabe se lá quando da noite, Demétrio se enfurnava em uma biblioteca com livros e só saia quando o segurança lhe expulsava apagando as luzes e desligando o ar. “Azar o dele que ainda não aprendi a estudar no escuro!”, ameaçava Dedé enquanto saía.

Certo dia, Demétrio estava lá, em mais um de seus longos e instantâneos dias quando chegou à sua frente uma moça gordinha. Meio calorenta, meio suada, quase um alienígena no meio de tudo aquilo, a moça interpelou Dedé:
- Colega, posso me sentar aqui?
- Claro, pois não! Faça-se à vontade!

E ela sentou. Ao sentar, chutou a cadeira, que bateu na mesa, e um barulho estremeceu todo o salão. “Tudo bem – pensou Dedé – não se irrite, foco no futuro!”. E pôs-se a trabalhar. Sim, aquilo para ele era trabalho mais do que sério e metas tinham que ser cumpridas para que o ideal não escapasse jamais!

Envolto em seus livros, Demétrio se perdia entre páginas e apontamentos, se achava entre cadernos e códigos e se imaginava entre o futuro abastado e o presente que precisava passar logo. Absorto, não percebeu quando a moça tirou de sua bolsa dois pares de garfos e colheres de plástico transparente, duas taças também de plástico, duas facas de plástico vermelho, algumas lantejoulas e laços. E também pôs se a trabalhar.

Com uma cola Super Bonder, aquela que cola mais os seus dedos que o objeto, a moça colava uma lantejoula e um lacinho nos garfos e facas e olhava para eles admirada. Girava as taças, segurava o garfo, levantava a faca contra a luz. Definitivamente estava toscamente bonito para ela.

E assim foi, por mais algumas horas, até que o telefone da moça tocou. Dedé nem se empertigou, mais sessenta páginas ainda precisavam ser lidas e três apontamentos ainda deveriam ser revisados. A moça atendeu:
- Oi, mor, sim sou eu.
- É to falando baixo que eu tô numa biblioteca.
- Já tá quase tudo pronto tá, amor? Tá lindo. Vai preparando o jantar ai!
- Hoje a noite vai ser do jeitinho que a gente queria.

E desligou. Nessa hora Dedé acordou do transe. Não tocado pelo momento, nem pelo cansaço do estudo. Inebriado em seus pensamentos sobre férias na Europa, apartamentos e roupas de alto luxo, carros do ano, Dedé não podia ser interrompido, “Metas precisavam ser batidas!”, gritou internamente. Já se preparava para destilar um sem número de vocábulos em um discurso erudito e um tanto mal colocado quando ouviu:
- Te atrapalhei né, moço? Tô saindo daqui a pouco, hoje é meu aniversário de casamento e precisa de uma louça mais caprichada.

E com um sorriso voltou a colar suas lantejoulas. Dedé ficou sem reação. Enquanto seus livros lhe rodeavam como minas de ouro a serem descobertas, autoridades e mais autoridades fariam parte de seu círculo social e um colar de diamantes já ostentava o pescoço da esposa que ele ainda não tinha, Demétrio esquecera de pensar no presente.

Sempre trabalhando com olhos na felicidade futura, Dedé vivia em função de datas em que provas ocorreriam, em função de férias em resorts que seus filhos curtiriam, em champanhes caríssimos que ele seus sogros degustariam. E para pagar isso tudo estava vendendo seu presente. Mas a que custo?

Aquela moça gordinha lhe parecia terrivelmente feliz. Simples como um sorriso de criança, lhe bastava uma data importante, meia dúzia de talheres de plástico e um jantar a ser preparado para que os olhos brilhassem.

Provavelmente fariam um prato simples, com uma música brega e dançariam. Numa casa mal ajambrada, a moça gordinha seria feliz, seu marido seria feliz e ambos dormiriam cansados após acabarem com um vinho barato. Talvez alguns vizinhos até ficassem com inveja. “A ignorância é uma bênção”, pensava Dedé.

E assim seguiu, ignorando seu presente, vivendo de futuro e tratando o hoje como passado. Dizem por ai que o presente se chama presente porque é uma dádiva que devemos aproveitar. Mas Dedé não sabe disso.

Para ele, viver o presente é desnecessário perto dos presentes que ele ainda há de comprar. Não para si, é claro, pois Dedé estará trabalhando demais e não terá tempo para isso no futuro, mas talvez para alguém que se faça presente. 

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Sobre iludidos e ilusões

Ser escritor não é lá tarefa muito fácil. Noves fora todo o mundo editorial, quedas de luz e textos perdidos e traças que insistem em devorar aquele seu exemplar de oitenta e um d’O Padrinho, a cada vez que o escritor se assenta para escrever, barras caem do teto em volta da cadeira e o texto vai assumindo formas grotescas, ora de criador, ora de obliterador. Depende de quem vê.

Os leitores agradeceriam pelo tempo despendido e pelas fantasias e criações colocados em formas de palavras. Pelas sensações criadas, pelos quadros pintados em suas mentes, pela felicidade proporcionada a cada choro ou sorriso e por todos os infindáveis momentos que passaram acompanhados de um livro.

Pelos complexos e apaixonantes personagens, por aquele final de semana chuvoso e frio que você só largou o livro pra comer, e ainda comeu lendo, e por aquela maravilhosa e assustadora sensação que se tem ao terminar um livro e descobrir que agora você precisa voltar à sua vida normal sem ele. Para estes, textos são como asas.

Para os escritores, textos são como pistolas disparadas a cada letra. A cada parágrafo escrito, uma ideia que parecia genial é deixada de lado. Para cada morte que se decreta, uma história de vida deixa de ser contada, para cada rumo que se toma, trinta e nove finais diferentes são assassinados e para cada parágrafo que se inicia, uma sentença começa a ser escrita.

Agora mesmo, escrevendo esse texto, já começo a me lamentar por não ter investido em outras palavras, por não ter inserido um personagem tão sedutor quanto uma morena do leste europeu que tem um perfume de toques amadeirados, por estar te dragando pra essa desilusão junto comigo.

Você não tem culpa, caro leitor, da minha fraqueza sentimental para com meus textos. Não é erro seu querer ler mais alguma coisa que e eu escrevo e você, com certeza, não tem nada a ver com essas lamúrias derramadas em torno dos textos que eu não escrevi.

Todos os exércitos que me escaparam ao escrever um conto de fadas não estavam sob seu comando. Todos os romances que não aconteceram em um faroeste não eram a sua paixão. Todos os heróis que tinham crimes a combater jamais sentirão falta que você vista a sua máscara antes de dormir. Você é sortudo, meu amigo.

Aproveite isso. Aproveite que a cada letra que me sai dos dedos não morra em você aquela história misteriosa sobre um beduíno no Marrocos, sobre um ritual místico em noite de lua cheia em uma tribo Umuarama, sobre as lendas não reveladas de um guerreiro nórdico feroz. Viva a sua vida, vá.

Não me deixe aqui te arrastando pro meu inferno de personagens que eu já matei, já abortei e outros tantos que eu joguei fora simplesmente porque me lembram alguém do meu passado. Fuja, saia já daqui, não se afunde mais nesse limbo literário junto comigo. Corra antes que seja tarde.

Até porque eu posso estar aqui só te iludindo com o meu talento dramático e na verdade tudo o que eu precisava era escrever mais um texto pra semana que vem. E você, que nada tinha a ver com isso, está ai nostálgico de algo que não viveu, absorto nos devaneios depressivos que eu finjo ter porque o texto tem que sair e eu preciso de dinheiro pra viver.

Mas não pense que você foi enganado. Não, é minha função te envolver. E ainda que você me acuse de ter feito você se apaixonar e depois desaparecer, eu não me arrependo. Egos à parte, o mercado editorial anda muito competitivo, o jornal precisa ser prensado e esse texto ainda concorre com mais duas colunas de fofoca, um assassinato a sangue frio e o gol do jogo de ontem.


E por mais que o seu romantismo literário te diga o contrário, ainda não dá pra se alimentar de pão e letras.