terça-feira, 12 de novembro de 2013

Gramática

Arnaldo era um sujeito comum, desses que não se repara.  Nunca foi de se expressar demais, era calado, parecia que engolia as palavras em vez de cuspi-las. Passava pela vida à penumbra, desapercebido, feito um agá antes de vogal. Típico sujeito que usa meias bege.

Vivia sua pacata existência sem saber que um dia, exatamente neste dia, uma cinzenta terça-feira daquelas que não se espera mais que uma ligação por engano, teria começo seu maior desengano.

Arnaldo se apaixonou. Linda, exuberante e cheia de curvas, suas formas eram poesia e mexiam com a alma dele. Cada simples gesto era fenomenal e tudo era perfeito como um conto. Seu nome era Gramática.

O começo foi como qualquer outra ardente paixão, onomatopeica, cheia de maiúsculas e com sinais de visível exclamação. Cavalheiro, Arnaldo fazia questão de trata-la da melhor forma e jamais lhe negava atenção. Andavam juntos como caneta e papel e o casamento não tardou a chegar. Definitivamente pareciam feitos um para o outro.

Mas era só impressão. Exigente, Gramática vivia abusando de travessões para interromper Arnaldo e impor suas opiniões, constantemente inseria parênteses nas conquistas de Arnaldo e isso sem falar nas frequentes interrogações sobre porque ele estava fora numa quinta à noite.

Arnaldo tentava de tudo para contornar os acessos de sua amada. Se fazia de ponto e vírgula pra juntar diferentes grupos de amigos, seus e de sua musa, se passava por dois pontos para apresentar à ela as belezas da vida, vivia a rimar sua infinita beleza com a destreza de um menestrel.

Não havia jeito, Gramática não se impressionava. Vivia colocando aspas nas discussões, dizendo “Arnaldo, os outros falam de você!”. Sempre insistindo que tudo que o marido fazia era o “ó”, se vangloriava do fato que se não fosse ela a colocar os pontos nos “is”, Arnaldo teria sido sempre o mesmo zero à esquerda. Pobre Arnaldo, se tornaria número.

E assim, sem mais nem menos, do belo e concordante começo, tudo ia perdendo a forma e eles claramente já não tinham mais a mesma métrica.

Arnaldo ainda era apaixonado por sua musa inspiradora e numa tentativa desesperada, passou a se enfurnar em sebos, procurando pelo frenesi do início da paixão, andava sempre com papel e caneta no bolso e um dia, num arroubo de loucura, roubou a letra “S” de um letreiro das Casas Bahia. Era o sinal de que as coisas rumavam a um ponto final.

Gramática, por outro lado, se tornou cada vez mais escorregadia, sempre saindo pela tangente, sempre com algumas reticencias. Certo dia, decidida a pôr um fim na relação, abusou das mesóclises, exclamando a plenos pulmões que fá-lo-ia se arrepender de enfiar outras pessoas no meio da relação deles.

E seguindo a ameaça ao pé da letra, abandonou o marido numa mesmíssima terça-feira chuvosa que deu início à paixão. Dizem os mais místicos que neste mesmo dia um outro enigmático discurso suicidou Vargas. Por certo era um trágico dia para os amantes das letras.

E Arnaldo, tal qual um herói grego que prefere atitudes platônicas, visivelmente capitulou. Já não sorria mais, já não falava mais, nem o jornal queria ler. Passava os dias na cama definhando.


Voltou a engolir as palavras, não sentia mais vontade de versar sobre nada, tinha certeza que aquele era o capítulo final. E assim morreu, tentando pronunciar uma monossílaba, engasgado em uma vírgula, que de tão pausada se tornou um ponto final.

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