segunda-feira, 26 de maio de 2014

Coisas que eu sei

Não, não tem absolutamente nada a ver com aquela música chiclete de uns tempos atrás. Aliás, faltou uma negação ali no título, o que possivelmente indica mais uma das coisas que eu não sei fazer: Dar título às coisas.

Só pra você ver, na época de escola me ensinaram que o ideal era escrever um texto e, só ao final, com tudo assentado e escarrado no papel, o título deveria ser escolhido e colocado lá em cima. É meio como uma lápide, sete palmos de parágrafos acima do desenvolvimento e que descreva em uma frase a vida prosa de uma página inteira que acabou de ter um ponto final. Enfim, eu sempre queria mostrar toda a minha cultura, fazia associações mirabolantes e no final, quando vinha a correção, eu tinha perdido o ponto em questão por chamar de “Sobre boleros & farofas” um texto sobre a televisão.

Mas esse não é o assunto do texto, e sim coisas as que eu não sei fazer na vida. É engraçado ver como o ser humano sempre se une na tristeza e no constrangimento, dificilmente na alegria. Pode apostar, nem todos iremos degustar uma Bistecca alla Fiorentina em uma autêntica cantina em Florença, mas todos nós já passamos pela situação de encontrar no restaurante, no dia seguinte, a menina com quem se atracou na festa de ontem.

Pouquíssimos de nós verão as pernas da Juliana Paes na primeira fileira de um teatro, mas muitos irão encontrar no elevador os vizinhos que minutos antes se amavam – e contavam pro prédio inteiro – o porque da expressão “Se amaram como cães no cio”.  Quase nenhum de nós ganhará um carro vermelho adesivado “Show de Prêmios do Amaral” em um bingo de dia das mães, mas todos nós encontraremos aquelas ex-namoradinhas de infância para quem nos declaramos e hoje morremos de vergonha disso. Em suma: Isso aqui é nada mais que uma ode ao constrangimento e embaraço.

Vejamos: Uma coisa em que poucos são expert em não saber fazer é se despedir de alguém que acabou de conhecer ao sair de um curso, por exemplo. É uma sucessão de “Você vai pra lá?”, “Vamos por aqui”, uma infinidade de buscas por um espaço suficientemente grande para dois passarem e esperas infinitas para que o sua mais nova amiga de agora chegue ao seu lado e você continue sua história.

E a coisa sempre ocorre mais ou menos assim:
- Cê tá indo pra onde?
- Pra lá!
- Hmmm, vambora então.
E engata na conversa.
- Então tá bom, eu vou ficar aqui que eu vou pra lá.
- Ah também posso ir.
- Então tá.
E a conversa volta. Interrupção:
- Eu vou ficar aqui que eu preciso virar nessa rua.
- Eu também.
- Haha, então tá.

E só nesses três quarteirões você já se despediu da pessoa três vezes e continua a caminhar ao lado dela. Estranho. Sorte sua que ela não pega o Metrô.

Situação análoga ocorre quando você encontra essa mesma amiga, agora um mês e meio após o início do curso, quando a intimidade é alguma mas bem pouca, numa loja no shopping. Chamemos essa fatídica nêmesis de Claudinha.

Os dois se veem, olhares se cruzam, você cumprimenta a pessoa, reclama do professor e se despede. Diz que precisa comprar algo pra sua mãe e que tá com pressa porque é aniversário e precisa esconder o presente antes que ela chegue em casa. 

Certo de que nunca mais irá ver a pessoa, você segue em frente, vira no primeiro corredor, dos sapatos, e quem está lá: Ela mesma, Claudinha do curso.

Sorrisos amarelos, um “Opa, deixa eu passar aqui...”, um apertar de passos e “Ufa!”, você se livrou dela de novo, ainda que ao pesado custo de sua mãe ter ficado sem o sapato. Paciência, alguns sacrifícios devem ser feitos em nome de um bem maior.

E a busca pelo Presente Graal continua. Entra no terceiro corredor, acha exatamente o vestido que sua mãe estava olhando na semana passada, já vai pensando se pega o preto ou o azul e, do nada, como um corte de câmera do Tarantino, advinha quem entra no outro oposto? Exatamente, o inferno de um metro e cinquenta e nove, tênis All Star e camisa escrito “Grunge is not dead”.

Sorrisos de novo, uma chegadinha pra frente, você finge que procura algo que não está encontrando – provavelmente seu autocontrole para não matar a Claudinha – e um comentário paira no ar:

- Ai é lindo, sua mãe vai adorar.

Você concorda, sorri e disfarça. Emenda um comentário qualquer que vai “dar mais uma olhadinha na loja” e some dali. Nem se lembra mais do que veio fazer, só o que está na sua cabeça é a cabeça da Claudinha em uma bandeja, com uma maçã na boca e frios fatiados ao lado.

Dois corredores depois. Cachecóis. Sua mãe vai viajar, tá fazendo frio ultimamente, vai ser isso mesmo. Isso ou a Claudinha amarrada em um espeto besuntada em mel e ursos canadenses soltos numa sala.
Você está lá, entre o roxo e o marrom, tentando escolher entre o “que não faz diferença nenhuma pra você” e o “vai esse aqui mesmo que eu quero ver o jogo da Seleção” quando olha pro lado e quem está lá? Isso mesmo.

Nessa hora você entende perfeitamente os touros e suas bandeiras vermelhas. Você pega qualquer coisa que vê pela frente, sai andando cuspindo vespas e entra na primeira fila que vê pela frente. Só quer pagar logo essa infelicidade de presente e esquecer pra sempre esse dia.

Azar o seu, a fila não é única, existem duas longas filas dos dois lados lados e, bom, deixa pra lá, quero nem dizer que vai te acompanhando, do lado esquerdo do ódio, até chegar ao caixa. E segunda-feira ainda tem curso.

Mas nada, eu disse nada, se equipara a impossível tarefa de receber um presente de um familiar. Reza a lenda que Hércules podia realizar as Doze tarefas ou fazer uma festa de aniversário e chamar todas aquelas tias que “pegaram ele no colo”, “deram o primeiro banho nele” e “trabalhavam com o pai dele no banco”. Bom, vocês sabem o que aconteceu.

O que importa é que até ele deve ter passado alguma vez pela hercúlea tarefa de ter que receber um presente de aniversário e decidir entre pular do penhasco e encarar o leão: Abre na frente da pessoa e esconde a decepção de ter ganho um livro sobre o cinema iraniano? Se faz de muito ocupado, agradece e deixa pra abrir depois ouvindo um “Não vai abrir não?” da pessoa e um “Agradece a ela, meu filho” da sua mãe? Rasga o papel com o dente, incendeia a caixa com uma tocha e sai pulando de paraquedas? Poucos saberiam qual escolher.

O que eu sei é que eu nunca vou aprimorar meus “Demais”, “Gostei muito” e “Nossa, que legal” a ponto de enganar a minha mãe e o olhar dela de “Garoto, ou tu gosta ou tu ama esse presente”, é impossível.


E quer saber, eu vou encerrar esse texto aqui mesmo, assim do nada, antes que eu fique mais sete parágrafos enrolando pra fazer mais uma coisa que eu não sei fazer, que é.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Presentes

Escuta essa. Aconteceu com o primo de um amigo meu. Deve ser verídica, não sei, mas agora que já está saindo não há mais como segurar. Infelizmente eu nunca soube como não ser verborrágico.

Demétrio, o tal primo, era um advogado recém formado. Sonhos na cabeça, um futuro brilhante a ser traçado, canetas e mais canetas já gastas de tantas anotações e um estranho hábito de besuntar o cabelo em gel.

Colocou na cabeça que um dia, “Em breve!” dizia ele, seria juiz. “Coisa pouca...” dizia a mãe, toda orgulhosa, “Esse menino quer ser Deus.” dizia o pai, fazendo pouco caso, enquanto o irmão mais novo olhava pra Dedé com os olhos de quem realmente vê um Deus.

Todos os dias, de uma da tarde até sabe se lá quando da noite, Demétrio se enfurnava em uma biblioteca com livros e só saia quando o segurança lhe expulsava apagando as luzes e desligando o ar. “Azar o dele que ainda não aprendi a estudar no escuro!”, ameaçava Dedé enquanto saía.

Certo dia, Demétrio estava lá, em mais um de seus longos e instantâneos dias quando chegou à sua frente uma moça gordinha. Meio calorenta, meio suada, quase um alienígena no meio de tudo aquilo, a moça interpelou Dedé:
- Colega, posso me sentar aqui?
- Claro, pois não! Faça-se à vontade!

E ela sentou. Ao sentar, chutou a cadeira, que bateu na mesa, e um barulho estremeceu todo o salão. “Tudo bem – pensou Dedé – não se irrite, foco no futuro!”. E pôs-se a trabalhar. Sim, aquilo para ele era trabalho mais do que sério e metas tinham que ser cumpridas para que o ideal não escapasse jamais!

Envolto em seus livros, Demétrio se perdia entre páginas e apontamentos, se achava entre cadernos e códigos e se imaginava entre o futuro abastado e o presente que precisava passar logo. Absorto, não percebeu quando a moça tirou de sua bolsa dois pares de garfos e colheres de plástico transparente, duas taças também de plástico, duas facas de plástico vermelho, algumas lantejoulas e laços. E também pôs se a trabalhar.

Com uma cola Super Bonder, aquela que cola mais os seus dedos que o objeto, a moça colava uma lantejoula e um lacinho nos garfos e facas e olhava para eles admirada. Girava as taças, segurava o garfo, levantava a faca contra a luz. Definitivamente estava toscamente bonito para ela.

E assim foi, por mais algumas horas, até que o telefone da moça tocou. Dedé nem se empertigou, mais sessenta páginas ainda precisavam ser lidas e três apontamentos ainda deveriam ser revisados. A moça atendeu:
- Oi, mor, sim sou eu.
- É to falando baixo que eu tô numa biblioteca.
- Já tá quase tudo pronto tá, amor? Tá lindo. Vai preparando o jantar ai!
- Hoje a noite vai ser do jeitinho que a gente queria.

E desligou. Nessa hora Dedé acordou do transe. Não tocado pelo momento, nem pelo cansaço do estudo. Inebriado em seus pensamentos sobre férias na Europa, apartamentos e roupas de alto luxo, carros do ano, Dedé não podia ser interrompido, “Metas precisavam ser batidas!”, gritou internamente. Já se preparava para destilar um sem número de vocábulos em um discurso erudito e um tanto mal colocado quando ouviu:
- Te atrapalhei né, moço? Tô saindo daqui a pouco, hoje é meu aniversário de casamento e precisa de uma louça mais caprichada.

E com um sorriso voltou a colar suas lantejoulas. Dedé ficou sem reação. Enquanto seus livros lhe rodeavam como minas de ouro a serem descobertas, autoridades e mais autoridades fariam parte de seu círculo social e um colar de diamantes já ostentava o pescoço da esposa que ele ainda não tinha, Demétrio esquecera de pensar no presente.

Sempre trabalhando com olhos na felicidade futura, Dedé vivia em função de datas em que provas ocorreriam, em função de férias em resorts que seus filhos curtiriam, em champanhes caríssimos que ele seus sogros degustariam. E para pagar isso tudo estava vendendo seu presente. Mas a que custo?

Aquela moça gordinha lhe parecia terrivelmente feliz. Simples como um sorriso de criança, lhe bastava uma data importante, meia dúzia de talheres de plástico e um jantar a ser preparado para que os olhos brilhassem.

Provavelmente fariam um prato simples, com uma música brega e dançariam. Numa casa mal ajambrada, a moça gordinha seria feliz, seu marido seria feliz e ambos dormiriam cansados após acabarem com um vinho barato. Talvez alguns vizinhos até ficassem com inveja. “A ignorância é uma bênção”, pensava Dedé.

E assim seguiu, ignorando seu presente, vivendo de futuro e tratando o hoje como passado. Dizem por ai que o presente se chama presente porque é uma dádiva que devemos aproveitar. Mas Dedé não sabe disso.

Para ele, viver o presente é desnecessário perto dos presentes que ele ainda há de comprar. Não para si, é claro, pois Dedé estará trabalhando demais e não terá tempo para isso no futuro, mas talvez para alguém que se faça presente. 

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Sobre iludidos e ilusões

Ser escritor não é lá tarefa muito fácil. Noves fora todo o mundo editorial, quedas de luz e textos perdidos e traças que insistem em devorar aquele seu exemplar de oitenta e um d’O Padrinho, a cada vez que o escritor se assenta para escrever, barras caem do teto em volta da cadeira e o texto vai assumindo formas grotescas, ora de criador, ora de obliterador. Depende de quem vê.

Os leitores agradeceriam pelo tempo despendido e pelas fantasias e criações colocados em formas de palavras. Pelas sensações criadas, pelos quadros pintados em suas mentes, pela felicidade proporcionada a cada choro ou sorriso e por todos os infindáveis momentos que passaram acompanhados de um livro.

Pelos complexos e apaixonantes personagens, por aquele final de semana chuvoso e frio que você só largou o livro pra comer, e ainda comeu lendo, e por aquela maravilhosa e assustadora sensação que se tem ao terminar um livro e descobrir que agora você precisa voltar à sua vida normal sem ele. Para estes, textos são como asas.

Para os escritores, textos são como pistolas disparadas a cada letra. A cada parágrafo escrito, uma ideia que parecia genial é deixada de lado. Para cada morte que se decreta, uma história de vida deixa de ser contada, para cada rumo que se toma, trinta e nove finais diferentes são assassinados e para cada parágrafo que se inicia, uma sentença começa a ser escrita.

Agora mesmo, escrevendo esse texto, já começo a me lamentar por não ter investido em outras palavras, por não ter inserido um personagem tão sedutor quanto uma morena do leste europeu que tem um perfume de toques amadeirados, por estar te dragando pra essa desilusão junto comigo.

Você não tem culpa, caro leitor, da minha fraqueza sentimental para com meus textos. Não é erro seu querer ler mais alguma coisa que e eu escrevo e você, com certeza, não tem nada a ver com essas lamúrias derramadas em torno dos textos que eu não escrevi.

Todos os exércitos que me escaparam ao escrever um conto de fadas não estavam sob seu comando. Todos os romances que não aconteceram em um faroeste não eram a sua paixão. Todos os heróis que tinham crimes a combater jamais sentirão falta que você vista a sua máscara antes de dormir. Você é sortudo, meu amigo.

Aproveite isso. Aproveite que a cada letra que me sai dos dedos não morra em você aquela história misteriosa sobre um beduíno no Marrocos, sobre um ritual místico em noite de lua cheia em uma tribo Umuarama, sobre as lendas não reveladas de um guerreiro nórdico feroz. Viva a sua vida, vá.

Não me deixe aqui te arrastando pro meu inferno de personagens que eu já matei, já abortei e outros tantos que eu joguei fora simplesmente porque me lembram alguém do meu passado. Fuja, saia já daqui, não se afunde mais nesse limbo literário junto comigo. Corra antes que seja tarde.

Até porque eu posso estar aqui só te iludindo com o meu talento dramático e na verdade tudo o que eu precisava era escrever mais um texto pra semana que vem. E você, que nada tinha a ver com isso, está ai nostálgico de algo que não viveu, absorto nos devaneios depressivos que eu finjo ter porque o texto tem que sair e eu preciso de dinheiro pra viver.

Mas não pense que você foi enganado. Não, é minha função te envolver. E ainda que você me acuse de ter feito você se apaixonar e depois desaparecer, eu não me arrependo. Egos à parte, o mercado editorial anda muito competitivo, o jornal precisa ser prensado e esse texto ainda concorre com mais duas colunas de fofoca, um assassinato a sangue frio e o gol do jogo de ontem.


E por mais que o seu romantismo literário te diga o contrário, ainda não dá pra se alimentar de pão e letras.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Adeus, Estrela Solitária

O tempo é inexorável. Corrói a tudo e a todos. Leva consigo tudo o que é gigantesco e não respeita o mais indestrutível dos institutos. Às vezes leva sonhos, às vezes leva lágrimas, às vezes leva pessoas, quase nunca leva mitos. Mitos são inoxidáveis, são impassíveis e invergáveis. São mitos.

Morreu hoje uma parte do meu folclore. Oitenta e oito anos, o demônio do coroa poderá descansar, cansado e combalido. Adeus Nilton Santos, obrigado por tudo. Armando Nogueira certamente já lhe prepara a crônica de boas vindas.

Poucos clubes no Brasil são uma pessoa. O Flamengo se espelha no Zico, o Santos se fez em Pelé, o Botafogo era o Nilton Santos. Não à toa os três estão na lista da Fifa de maiores clubes do século XX.

Lágrimas jamais serão suficientes, textos jamais exaurirão suas mágicas, palavras jamais expressarão sua genialidade, a vida foi muito pequena para você. Saindo dela para definitivamente entrar pra história, se vai Nilton Santos, a Estrela Solitária e deixa aqui a imortalidade das paixões que despertou.

Personificação de uma multidão, este senhor de sorriso afável e comportamento bondoso deixa órfão hoje um sem número de seguidores, a grande minoria deles botafoguenses como eu.

Hoje o Brasil se torna menos campeão, menos folclórico, menos identificado e mais comum. Foi-se um homem de brios e princípios, um gentleman capaz de fazer apaixonar por um escudo até o mais romântico dos escritores. Um malandro inocente que fez do Brasil o que hoje ele é.

Pilar da principal paixão do brasileiro, perde hoje o Botafogo e o país, ganha a pelada celestial. Hoje tem festa lá em cima, tem jogada pelos dois flancos, tem Garrincha endiabrado e Nilton Santos recém chegado. Hoje os dois se abraçam, se embrenham pelas nuvens atrás de passarinho, jogam linha de passe até cansar e depois matam a saudade das conversas. Ah que inveja dos anjos!

E que tristeza! Hoje morreu o espírito do Botafogo. Hoje se torna menos alvinegra a camisa que meu peito enverga, os opostos se abraçam pra chorar sua perda e tudo que era preto e branco fica meio cinza.

Desbota também o amarelo ouro da seleção nacional, que desnorteado se mistura com o azul, o verde e o branco pra se tornar tão indefinido quanto o sentimento de perda que hoje assola o Brasil.

Obrigado por tudo, seu Nilton. A falta do seu sorriso nas manchetes antes das finais vai ser difícil de aceitar. O coração em forma de bola se despedaça, os gomos se rasgam e agora jaz no peito de cada botafoguense uma lápide em forma de escudo, sem a sua maior estrela, negra como o luto que invade.

Tal qual um livro que chega ao seu capítulo final, hoje se escreveu a última página da Enciclopédia do futebol e uma pesada capa nos esmaga a razão. Vá em paz, Estrela Solitária, você nos fez feliz!

E leve consigo aquela placa que por anos ornamentou a sua e tantas outras casas de botafoguenses pelo mundo. Prenda a na entrada do céu, deixe bem visível, faça-se entender: “Seja bem-vindo, mas não fale mal do meu Botafogo”.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Maternidade

A vida às vezes nos brinda com momentos absolutamente sublimes. Esse aconteceu outro dia. Um dia qualquer, que não merece qualquer distinção, como tantos outros que se passam todos os dias.

Hora do almoço, Metrô relativamente cheio e um calor infernal. O Rio de Janeiro ultimamente me parece com uma vontade abissal de se candidatar a ser um emirado desses da vida. Um sol incidente, preços exorbitantes e ostentação sem limites. Os mais esnobes diriam que o Rio anda se sentindo a última Coca Cola do deserto. Eu fico com a opinião que ele tem certeza que é o deserto que tem a última Coca Cola. Inclusive já comentam que esse é o carro chefe da candidatura da cidade a emirado, com direito a patrocínio, urso polar de sunga, Papai Noel de tanga e tudo o que mais que lhe for de direito.

Enfim, voltemos ao metrô. O vagão quase tomado, bancos mais disputados que água no deserto e eis que entra uma mãe com seu carrinho de bebê. Movimentação. Uns mexem com a criança, outros oferecem o lugar, mulheres abraçam seus maridos e lugares magicamente vagam para que a jovem mãe possa se sentar.

Numa dessas curiosidades que a vida faz questão de apresentar, o lugar que ela escolheu era exatamente ao lado de uma grávida. Que momento lindo.

Talvez atraída como um imã pelo instinto maternal de outra semelhante, a mãe se assenta em seu lugar e começa a brincar com a criança, acompanhada da vó. Diriam alguns, tocados pela situação:
- Olha que lindo! Passado, presente e futuro, juntos em um só momento.

A vó pede para criança falar vovó, a mãe pede para criança falar mamãe, a moça ao lado da vó dá “tchauzinho” e alheio a isso tudo, o moleque só solta um “bá”. É ou não é lindo?

Ao lado de toda essa comoção, a jovem grávida acaricia sua barriga e olha com ternura para o carrinho. Murmura algumas palavras, seus olhos enchem d’água e a criança sorri para ela. É, definitivamente é lindo.

E o momento sublime se estende como uma leve pluma que paira no ar. A mãe e a vó brincam com a criança, outros passageiros observam a cena com um sorriso no rosto, a grávida acaricia cada vez mais a barriga e olha com toda a compaixão do mundo. Se um teste fosse feito naquele momento, atestaria sem dúvidas que 93% das mulheres presentes naquele vagão ovularam ao ver a cena.

Já me pegava imaginando o que a gravida estava a pensar, o que diria ao seu futuro filho, os planos que ela fazia para quando a criança nascesse quando de repente, e não mais que de repente, pois nada na vida é tão de repente assim, o vagão deu uma parada brusca, daquelas que o locutor informa “O Metrô Rio pede desculpas pela parada brusca”, e o carrinho deu uma forte sacolejada.

A mãe se projetou para frente para proteger a prole, a vó se segurou no assento, alguns passageiros se ajustaram como em um carro de bois e o moleque, o moleque é claro que chorou.

Alto, estridente, incessante e sem respirar. Choro daqueles que dá dó ver a criança se esgoelando sem nada poder fazer. Todos no vagão fizeram cara de pena e se ofereceram para ajudar, a grande maioria não mais que em suas mentes.

E a jovem grávida, bom, a jovem grávida fez cara de “sem paciência”, deu uma coçada no ouvido como quem tenta desentupi-lo depois de uma explosão nuclear, levantou do assento absolutamente exausta da situação e saiu na próxima estação.


Até porque o filho era da outra, cada um cuida do seu e ela já tem bastante trabalho para cuidar do dela que ainda nem chegou. Sem contar que aquela criança nem era aquela Coca Cola toda.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Outubro

Outubro. Cidade lotada, totalmente abarrotada, gente saindo pelo ladrão. A tradicional Oktoberfest de Baierão do Norte esse ano recebia o seu maior público desde que Fritz, um alemão filho de alemães e neto de alemães tinha criado a festa, em 1962. Hipérboles e superlativos ao gosto do cliente, esse ano quantificação de turba, povaréu, turma e multidão ganhava um novo significado.

Diversos tipos, variadas vontades, objetivos diferenciados. Todo tipo de gente: tinha gente falando de gente, gente observando gente, gente que só naquela época era gente e até alguma gentinha, é claro, daqueles zé povinho, sabe? Como bem disse uma repórter que cobria o evento, em ex-clu-si-vi-da-de para a rede local, “Gente! Aqui realmente tem muita gente!”.

O evento era mágico. Barracas com produtos típicos, de mostardas a chucrute, moças lindas vestidas de tradicionais alemãs, tendas vendendo salsichas e linguiças dos mais variados tamanhos e colorações e, obviamente, cerveja. Muita cerveja. Nesse momento me ocorre uma dúvida mortal e morrer sozinho com ela me mataria: Era mais gente ou mais cerveja? Não sei.

Durante quatro dias de evento os cidadãos e os milhares (seriam milhões?) de frequentadores provariam desde aquele delicioso sanduíche da Barraca da Helga, uma descendentes de alemães que tinha mais buço que meu sobrinho de 19 anos, um especial apfelstrudel que daria desejos ao Coronel Landa, de um daqueles clássicos filmes do Tarantino, e os todos os mais variados tipos de cerveja. Ales e lagers, de weissbier a stouts, passando por porters, witbiers, trapistas, brown, red e pale ales. Isso sem falar em todos os tradicionais cânticos alemães.

E as pessoas comiam, bebiam e cantavam. Começavam com um sanduíche de linguiça, uma witbier pra abrir o apetite e uma tradicional canção alemã. No meio do dia alguns já se empanturravam de chucrute, bebiam pesadas porters e berravam obscenos gritos de torcidas. E no fim, bom, no fim a maioria já comia cerveja molhada no pão, se lambuzava com mostarda preta e cantava canções tatibitates que as crianças aprendem no maternal. Resumidamente, ali estava escarrado um retrato da felicidade reduzida à sua mais singular síntese.

Como não poderia deixar de ser, o ponto alto da festa era aquilo que misturava muitas pessoas e muita cerveja. A disputa de quem bebia mais provetas de chope à metro da Schroder Bier, a patrocinadora do evento, movimentava as bancas de aposta e fazia ricos os tradicionais pés de cana da cidade, que conheciam como ninguém os únicos capazes de virar uma cerveja como se estivessem assistindo um especial sobre bandeiras da Alemanha Oriental.

O pule de dez desse ano era o Zeca Bituca, o vencedor dos dois anos anteriores e o criador do “Engana morte”, uma bebida que misturava sete tipos de destilados, dois ovos de codorna, uma cereja e uma minhoca recém tirada da terra. Bêbado nato, sua fama o precedia e correm boatos que um médico uma vez descobriu um segundo fígado alojado entre o coração e o pulmão.

Outros fortes candidatos estavam inscritos e a disputa desse ano já era descrita pelos mais entendidos como a mais concorrida desde a festa de 73, quando Carlos Batata venceu Preguinho por uma diferença de 2 segundos, graças a uma estratégia nórdica de absorver cerveja no bigode que ele havia aprendido na Suécia dois anos antes. Mas a prova desse ano prometia mais.

Com todos os candidatos posicionados na mesa principal, belas moças segurando as bebidas e a multidão ouriçada, a competição começou com uma pequena vantagem de Zeca, acompanhando ainda por dois forasteiros que eram constantemente vaiados e chamados de “guela fina” e o filho da dona Helga, certamente um possível herdeiro da tática de Batata, dados os seus genes.

Inflamados pela cerveja, ou pelas moças que no palco estavam e faziam uma dança que em nada lembrava a sobriedade alemã, exceto pela perspicaz observação de alguns que o movimento dos quadris de uma delas lembrava as formas de uma suástica, os espectadores urravam a cada golada e a atmosfera era de final de Copa do Mundo.

Eis que do nada, assustada por uma bombinha soltada por um daqueles alemãezinhos de calças apertadas, uma vaca escapou do curral e, desabalada, atravessou em cheio as estruturas do palco e jogou pelos ares todos que em cima estavam, inclusive as provetas e toda a cerveja lamentavelmente desperdiçada.

Confusão geral. Alguns já cantavam vitória para o Zeca, outros ainda xingavam os forasteiros, uma ala mais rebelde jogava copos cheios de cerveja no palco, dizendo que aquilo era marmelada, e a maioria se encontrava em um estado de hipnose profunda com as pernas das moças que balançavam no ar.

Recorreram às filmagens. Zeca havia bebido cinco provetas, os forasteiros quatro e três, cada um, o filho da Dona Helga se babou na segunda proveta e deixou a barba postiça cair e o vencedor, para a surpresa geral foi seu Severino, que havia trabalhado montando o palco e só se inscreveu porque estava com sede, com incríveis sete provetas.

Consternação! O Zeca pediu recontagem, os forasteiros fugiram antes que fossem linchados, o filho da Dona Helga sumiu de vergonha, e o “Seven”rino, como os jornais o chamariam no dia seguinte, saiu exclamando, exibindo um sorriso sem os dois laterais e o homem de frente inferior:


- Isso aqui é Cascadura, mermão! 

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Gramática

Arnaldo era um sujeito comum, desses que não se repara.  Nunca foi de se expressar demais, era calado, parecia que engolia as palavras em vez de cuspi-las. Passava pela vida à penumbra, desapercebido, feito um agá antes de vogal. Típico sujeito que usa meias bege.

Vivia sua pacata existência sem saber que um dia, exatamente neste dia, uma cinzenta terça-feira daquelas que não se espera mais que uma ligação por engano, teria começo seu maior desengano.

Arnaldo se apaixonou. Linda, exuberante e cheia de curvas, suas formas eram poesia e mexiam com a alma dele. Cada simples gesto era fenomenal e tudo era perfeito como um conto. Seu nome era Gramática.

O começo foi como qualquer outra ardente paixão, onomatopeica, cheia de maiúsculas e com sinais de visível exclamação. Cavalheiro, Arnaldo fazia questão de trata-la da melhor forma e jamais lhe negava atenção. Andavam juntos como caneta e papel e o casamento não tardou a chegar. Definitivamente pareciam feitos um para o outro.

Mas era só impressão. Exigente, Gramática vivia abusando de travessões para interromper Arnaldo e impor suas opiniões, constantemente inseria parênteses nas conquistas de Arnaldo e isso sem falar nas frequentes interrogações sobre porque ele estava fora numa quinta à noite.

Arnaldo tentava de tudo para contornar os acessos de sua amada. Se fazia de ponto e vírgula pra juntar diferentes grupos de amigos, seus e de sua musa, se passava por dois pontos para apresentar à ela as belezas da vida, vivia a rimar sua infinita beleza com a destreza de um menestrel.

Não havia jeito, Gramática não se impressionava. Vivia colocando aspas nas discussões, dizendo “Arnaldo, os outros falam de você!”. Sempre insistindo que tudo que o marido fazia era o “ó”, se vangloriava do fato que se não fosse ela a colocar os pontos nos “is”, Arnaldo teria sido sempre o mesmo zero à esquerda. Pobre Arnaldo, se tornaria número.

E assim, sem mais nem menos, do belo e concordante começo, tudo ia perdendo a forma e eles claramente já não tinham mais a mesma métrica.

Arnaldo ainda era apaixonado por sua musa inspiradora e numa tentativa desesperada, passou a se enfurnar em sebos, procurando pelo frenesi do início da paixão, andava sempre com papel e caneta no bolso e um dia, num arroubo de loucura, roubou a letra “S” de um letreiro das Casas Bahia. Era o sinal de que as coisas rumavam a um ponto final.

Gramática, por outro lado, se tornou cada vez mais escorregadia, sempre saindo pela tangente, sempre com algumas reticencias. Certo dia, decidida a pôr um fim na relação, abusou das mesóclises, exclamando a plenos pulmões que fá-lo-ia se arrepender de enfiar outras pessoas no meio da relação deles.

E seguindo a ameaça ao pé da letra, abandonou o marido numa mesmíssima terça-feira chuvosa que deu início à paixão. Dizem os mais místicos que neste mesmo dia um outro enigmático discurso suicidou Vargas. Por certo era um trágico dia para os amantes das letras.

E Arnaldo, tal qual um herói grego que prefere atitudes platônicas, visivelmente capitulou. Já não sorria mais, já não falava mais, nem o jornal queria ler. Passava os dias na cama definhando.


Voltou a engolir as palavras, não sentia mais vontade de versar sobre nada, tinha certeza que aquele era o capítulo final. E assim morreu, tentando pronunciar uma monossílaba, engasgado em uma vírgula, que de tão pausada se tornou um ponto final.